25 de maio de 2009

Carta de um beija-flor

Do alto desta varanda vejo um mar de pedras. Entre as construções cuidadosamente traçadas pela mão humana, busco uma para me refugiar desta prisão. Será que um beija-flor ainda pode encontrar, em inteligente e dócil atitude, simples abrigo? Que pergunta idiota se bem sei que com o progresso veio também a crueldade. Tenho saudades do tempo em que meu alimento não era somente o néctar das flores, mas o carinho desinteressado de um humano que não pensou somente na minha beleza. Sou um pássaro experiente e, mesmo assim, não consigo lembrar de um homem com o olhar tão sonhador e fisionomia tão dócil quanto Augusto Ruschi. Sim, o conheci e fomos amigos. Para as pessoas de mente pequena essa comunicação entre os mundos é impossível, mas para aqueles que olham para uma flor, um peixe, um pássaro ou até mesmo para si mesmos e, despidos de dogmas, acreditam na igualdade perante Deus, tudo é passivo de realização. Basta sentir, ouvir, cheirar, apreciar e principalmente se deixar levar pela emoção da descoberta.
Na Estação Biológica de Santa Lúcia, local onde Augusto está enterrado, construi muitos de meus ninhos. Acreditei que quem nascesse naquele lugar seria protegido por sua alma, e, como um presente, durante 21 anos, muitos filhos meus sairam de lá para encantar o resto do mundo.
Voando sem paragens eu não tinha conhecimento sobre a vida do nobre Augusto, mas num dia nublado, por acaso, vi um jovem lendo um dos 450 trabalhos científicos desenvolvidos por meu defensor mais feroz. Li e confesso que chorei quando percebi que um deles tinha o título: “Beija-Flores do Espírito Santo”. Essa passagem não consigo esquecer e de maneira tímida, depois deste fato, sempre entrava furtivamente na biblioteca antiga em busca de mais conhecimento sobre ele. Era a minha maneira de aproximação saudosa.
Lembro-me bem quando aquele homem me pegou em suas mãos e com os olhos arregalados me falou para não ter medo. A princípio pensei na morte. Quem iria chorar por um beija-flor? Mas foi diferente. Logo depois ele me soltou, entretanto, mesmo voando longe tive vontade de voltar. Nem com minha mãe tive esse contato de modo tão singelo e amoroso. Por isso, voltava todos os dias e percebia que Augusto não fez isso somente comigo, mas com boa parte das espécies animais e vegetais. Eu, como bom animal irracional, não acreditava que os superiores racionais seres humanos dessem valor. Um engano bom de se ter, pois ele realmente se importava.
Ruschi nos compreendia mas os outros não o entendiam, tanto que, certa feita, isso no ano de 1977, escutei de um outro pássaro a notícia que ele tinha desafiado o governador do estado do Espírito Santo em nosso nome. A floresta toda comentou e se exaltou com este ato. Recordo que até uma orquídea mudou de cor simbolizando a alegria orgulhosa do momento.
Porém para divulgar seu árduo trabalho de preservação da natureza ele precisava de amigos, pois conforme o dito popular: “Uma andorinha só não faz verão”, foi então que jornalistas como Chatô entraram em cena e fizeram com que as idéias e teorias de Augusto fossem conhecidas em todo o mundo. Não somente conhecidas, pois os estudos foram também respeitados. Com isso os ventos sopraram e hoje posso afirmar com a convicção da liberdade da qual já desfrutei, que ele estava certo.
Há alguns dias, um senhor foleava seu jornal atentamente no banco da praça. O calor que fazia em pleno outono prenunciava que algo estava errado. Curioso, bati as asas o mais rápido que podia sem ser evasivo, cheguei perto da primeira página e vi a manchete que afirmava a caótica situação do planeta. Fiquei triste, pois notei que mesmo tendo sido considerado um dos 1000 grandes homens que construíram o saber e as idéias do século XX e, sem dúvida o principal personagem da defesa ecológica nacional, Augusto Ruschi teve poucos seguidores.
Falo agora de minha condição atual: Estou preso em uma gaiola, fechado para a vida e também para o mundo. Fui posto aqui por um homem do qual nem sei o nome. Ou sei, mas não quero lembrar. Perdi meu defensor e para escrever esta carta tive que me tornar um quase humano. Fiz das minhas asas mãos para poder escrever. Não quero ser homem, espero apenas o respeito, todos precisam saber que não sou somente um pássaro, mas sim um mensageiro da natureza que ousa vivenciar tempos de liberdade e consciência. Sim, é possível sobreviver sem agredir. Se todos tivessem ouvido o que Augusto Ruschi disse, certamente eu poderia estar vivendo minha vida como ser irracional.
As injustiças me deixam triste mas não podem apagar as lembranças. Irmão Augusto onde você está? me ajude por favor!

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