Acredito que seja do conhecimento de todos que neste último 27 de março faleceu Millôr Fernandes. Este que foi desenhista, humorista, dramaturgo e escritor, passou por importantes veículos de comunicação, entre eles O Cruzeiro, O Pasquim e Veja.
No
site da Piauí encontrei um texto escrito por Mario Sérgio Conti sobre ele, e é isso que trago pra vocês.
Millôr, um nome a zelar
por Mario Sergio Conti
A história é velha e verdadeira. Aos 17 anos, Milton Fernandes viu a sua certidão de nascimento. A caligrafia do escrivão estava desenhada em excesso, era uma profusa confusão de arabescos. Apesar da opulência das linhas e traços, o documento tinha um sentido só, que apontava para um erro de origem: o prenome dele não era Milton, era Millôr. O rapaz gostou da novidade. Trocou o mero Milton pelo nome melhor. Millôr é dos poucos, pois, que rejeitaram a vontade dos pais. Livrou-se do nome imposto, se autonomeou (atenção, bancada vienense: o jovem em questão era órfão de pai e mãe), batizou a si mesmo. Assim virou Millôr, primeiro e único.
O que há num simples nome?, pergunta Julieta a Romeu, no balcão, e ela mesma responde, perguntando:
Aquilo que chamamos rosa, com outro nome não teria igual perfume?
Se Millôr tivesse continuado Milton, teria sido igualmente rosa, continuaria com o mesmo perfume? Há algo de impróprio em se reapropriar continuamente do próprio nome próprio? O cara tem um baita problema de identidade, né não? É um egocêntrico megalômano?
Nem tanto. É longa a tradição, nas artes plásticas, do auto-retrato. Pintar a si mesmo serve tanto de espelho como de disfarce. A série de auto-retratos de Rembrandt pertence à categoria do espelho. Ela registra a passagem do tempo e o artista que muda. O retratista retratado é primeiro guapo mancebo, aí amadurece, depois envelhece e por fim envilece, vira rosto vil. Já Caravaggio, que pintou a si mesmo na cabeça decapitada de Golias, usou o auto-retrato para perder a cabeça, se auto-amputar.
Millôr não se espelha nem se disfarça nem se amputa. Ele se propaga e se reitera. Seus auto-retratos não têm rosto. Eles escancaram um nome e escondem um homem. Ao contrário dos de Rembrandt, os seus auto-retratos não seguem uma seqüência. Não descrevem uma progressão. Vivem mais no espaço do que no tempo: se espalham em todas as direções, incorporando ao sujeito, ao ego, aquilo que está nos arredores do seu nome. À diferença do Caravaggio-Golias (que separa a cabeça do corpo, a mente do espírito, o retratado do retratista), Millôr mostra que cérebro, testa, tronco, membros, pensamento, traços, cores e coração podem formar um todo, desmembrado, que aponta para o infinito. Aqueles nomes todos são ele, Millôr. O que há neles de agudo, de colorido, de curvo e gracioso, tudo que há neles é Millôr.
Convém olhar esses nomes com vagar. Salvo engano, não há nada semelhante na história da arte. O artista se auto-impõe um espaço exíguo, uma forma fixa, os limites estritos de sua identidade nominal. E, dentro da prisão de si mesmo, expõe a liberdade individual. A liberdade tem graça porque transcende o indivíduo.
Outro dia, no seu estúdio, em Ipanema, ao escutar que seus nomes são geniais, Millôr sorriu. Disse que eles não são produto de genialidade, e sim da sua obsessão em se divertir. Ele começou a brincar com a palavra Millôr em 1938, na revista O Cruzeiro. Não parou mais. Perdeu a conta de quantos Millôres fez. Sua arte é a de brincar, de criar, de se recriar.
“Todo dia leio cuidadosamente os avisos fúnebres dos jornais: às vezes a gente tem surpresas agradabilíssimas.” (Millôr Fernandes)
...porém, não nessa vez.